Análise jurídica aponta que flexibilidade na Lei 8.112/90, em contraste com a Lei 12.990/2014, perpetua a sub-representação de pessoas com deficiência em concursos públicos.
Uma análise aprofundada da legislação brasileira, conduzida por especialistas em direito administrativo e políticas públicas, revela uma disparidade alarmante na aplicação das políticas de ações afirmativas para o serviço público, com sérias consequências para as Pessoas com Deficiência (PcD). A inconsistência entre o regime de cotas estabelecido pela Lei nº 8.112/90 para PcD e a Lei nº 12.990/2014 para candidatos negros está resultando na persistente sub-representação e exclusão desse grupo em cargos públicos federais, contrariando os princípios constitucionais de isonomia material e inclusão social.
Contexto
As ações afirmativas no Brasil, especialmente no acesso ao serviço público, são um reflexo da busca por maior equidade e representatividade. A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 37, inciso VIII, estabeleceu a reserva de percentual de cargos e empregos públicos para pessoas com deficiência. Subsequentemente, a Lei nº 8.112/90 regulamentou essa previsão, fixando que até 20% das vagas oferecidas em concursos públicos deveriam ser destinadas a candidatos PcD.
Paralelamente, em 2014, foi sancionada a Lei nº 12.990/2014, que reservou 20% das vagas em concursos públicos federais para candidatos negros. Embora ambas as leis visem promover a inclusão e combater desigualdades históricas, a redação e a aplicação prática de cada uma criaram um cenário de discrepância que hoje impacta diretamente a efetividade das políticas de inclusão para as pessoas com deficiência.
A diferença crucial reside na formulação. Enquanto a lei para candidatos negros estabelece um percentual fixo de 20%, a legislação para PcD utiliza a expressão “até 20%”. Essa flexibilidade, à primeira vista inofensiva, tornou-se um ponto de fragilidade que permite a gestores públicos reduzir significativamente a reserva de vagas para pessoas com deficiência, frequentemente para o mínimo legal, que é de 5% conforme o Decreto nº 9.508/2018.
O Arcabouço Legal e Suas Nuances
A Lei nº 8.112/90 é o Estatuto dos Servidores Públicos Civis da União, e seu artigo 5º, § 2º, prevê a reserva de vagas. No entanto, a interpretação e a aplicação dessa norma têm permitido uma margem de discricionariedade que não condiz com o espírito da norma constitucional. Esta análise jurídica, realizada por nossa equipe editorial com base em documentos legais e pareceres de especialistas, aponta que o uso do termo “até” acaba por desvirtuar o propósito inclusivo.
Em contraste, a Lei nº 12.990/2014 para cotas raciais não oferece essa margem, garantindo que 20% das vagas sejam, de fato, reservadas. Essa distinção normativa é o cerne da disparidade identificada, gerando um desequilíbrio que se manifesta na sub-representação crônica de pessoas com deficiência na estrutura do serviço público federal.
Impactos da Disparidade
Os impactos dessa disparidade legal são profundos e multidimensionais. O mais evidente é a sub-representação massiva de pessoas com deficiência nos quadros do serviço público brasileiro. Em muitos concursos, a reserva de vagas para PcD é fixada em um patamar mínimo, geralmente 5%, enquanto a cota para negros é rigidamente mantida em 20%. Isso cria uma assimetria que impede a real inclusão e a diversidade.
Consideremos um cenário hipotético: em um concurso com 100 vagas, 20 seriam destinadas a candidatos negros, mas apenas 5 a candidatos PcD. Essa discrepância não apenas dificulta o acesso inicial, mas também perpetua um ciclo de exclusão. A falta de representatividade dentro da administração pública impacta a formulação e implementação de políticas públicas que deveriam atender às necessidades desse segmento da população, já marginalizado.
A prática atual da fixação do percentual em 5% para PcD, em vez de um patamar mais próximo do limite de 20%, contraria diretamente o princípio da isonomia material. Este princípio, fundamental no direito brasileiro, busca tratar os desiguais de forma desigual na medida de suas desigualdades, a fim de alcançar uma igualdade de fato, e não apenas formal. Ao limitar as oportunidades de acesso, o Estado falha em promover essa igualdade substancial para as pessoas com deficiência.
A Questão da Isonomia Material e a Exclusão
A análise jurídica contextualizada, conforme a fonte primária deste artigo, demonstra que a flexibilidade na aplicação das cotas para PcD se traduz em uma falha do sistema em corrigir desvantagens históricas. A intenção constitucional de inclusão é frustrada quando a letra da lei é interpretada de forma a minimizar, e não maximizar, a participação de grupos vulneráveis.
Além disso, a falta de critérios claros para a distribuição das vagas reservadas dentro dos concursos, como a aplicação da reserva tanto para as vagas de ampla concorrência quanto para as específicas de cada especialidade (aplicação vertical e horizontal), agrava ainda mais o problema. Muitas vezes, a reserva é feita de forma genérica, sem considerar a real demanda ou a distribuição equitativa entre os cargos oferecidos, diluindo ainda mais as chances dos candidatos PcD.
Próximos Passos
Diante do cenário de disparidade e sub-representação, é imperativo que os próximos passos envolvam uma revisão e reformulação das políticas de cotas para Pessoas com Deficiência no serviço público. A oportunidade para tal mudança se alinha com o debate sobre a reforma administrativa, que pode ser um veículo para corrigir essas distorções.
Uma das propostas mais urgentes é a alteração da redação da Lei nº 8.112/90 ou do Decreto nº 9.508/2018 para eliminar a flexibilidade do “até 20%” e fixar o percentual em 20% para PcD, espelhando o modelo de sucesso da Lei nº 12.990/2014. Essa medida garantiria que o propósito inclusivo das ações afirmativas seja plenamente alcançado, oferecendo uma igualdade de oportunidades mais concreta.
Além da fixação do percentual, outras ações são cruciais para aprimorar a efetividade das cotas. É fundamental que a reserva de vagas seja aplicada de forma vertical e horizontal, ou seja, em todos os níveis e tipos de cargos do concurso, e não apenas sobre o total de vagas. Isso asseguraria que as pessoas com deficiência tenham acesso a uma gama mais ampla de posições e não fiquem restritas a cargos de menor visibilidade ou complexidade.
Propostas para uma Reforma Inclusiva
- Fixação do Percentual: Substituir “até 20%” por “20%” na legislação referente às cotas para PcD em concursos públicos.
- Aplicação Abrangente: Garantir que as cotas sejam aplicadas de forma vertical (em cada cargo) e horizontal (em cada edital), sem cláusulas que desconsiderem a reserva se o número de vagas for baixo.
- Monitoramento e Avaliação: Implementar mecanismos robustos de acompanhamento e avaliação da efetividade das políticas de cotas, com indicadores claros sobre a inclusão e progressão das pessoas com deficiência no serviço público.
- Capacitação e Conscientização: Promover a capacitação dos gestores públicos e a conscientização sobre a importância da inclusão e da diversidade, desmistificando preconceitos e barreiras atitudinais.
A reforma administrativa em pauta no Brasil representa uma janela de oportunidade para não apenas modernizar o serviço público, mas também para torná-lo mais justo e representativo. Ignorar a questão das cotas para pessoas com deficiência neste momento seria perpetuar uma injustiça social e ir contra os princípios de cidadania e direitos humanos que a Constituição Federal tanto preza.
Nossa equipe de pesquisa jurídica e editorial reforça a necessidade de um olhar atento dos legisladores e formuladores de políticas públicas para essa lacuna. A inclusão plena das pessoas com deficiência no serviço público não é apenas uma questão de direito, mas de justiça social e de construção de uma sociedade mais equitativa e eficiente.
Fonte:
ConJur – Aos reformadores administrativos: não se esqueçam das cotas para pessoas com deficiência. ConJur

